domingo, julho 16, 2017

Entrevistas antigas a autores de BD - António Luís, argumentista



Na BD procuramos alimento para os nossos sonhos.

Corto Maltese tem imaginação, coragem e medo também. Vícios e virtudes que o fazem um herói anti-herói. Zorro e Robin dos Bosques fazem a justiça que gostaríamos de ver concretizada nos nossos quotidianos. A formação ideológica da gente também tem a ver com a adesão que sentimentalmente se vai dando aos pequenos heróis - eis, em síntese,uma análise dos heróis de BD feita por António Luís, colaborador de jornais e argumentista de BD.

António Luís Ferreira Baptista (para a BD apenas António Luís) nasceu em Évora.

«Lá nasci e cresci, e fiz o liceu. Olhe, aquele sujeito que está ali - ali, era o écran da televisão do café onde estávamos - chama-se Fernando Martinho, foi meu professor de Português e meu amigo. Não sei se sabe, ele foi assistente de Jorge de Sena, na Califórnia. Ele é que me incitou a escrever, tinha eu 14 anos.»

Nascido em 1950, a oito de Novembro, António Luís cedo começou a gostar da escrita. Naturalmente, escrever para a BD ainda não fazia parte dos seus projectos... E quanto aos estudos, o que se passou depois de terminar o liceu?

«Ainda fiz duas matrículas - uma em Direito, outra em Sociologia -, mas não cheguei a concretizá-las. Isso deve-se um pouco ao facto de que a minha perspectiva desde a adolescência tinha sido o jornalismo. Mas, fundamentalmente, porque no princípio da idade adulta comecei a ter uma actividade política muito intensa: das 24 horas do dia não sobrava praticamente tempo para mais nada que não fosse ler, beber uns copos com os amigos e, enfim, viver... Isso incluiu umas idas a Paris, por exemplo... E quanto ao jornalismo, ainda comecei a escrever, de uma forma mais ou menos regular, para a imprensa regional.»

As palavras de António Luís vão surgindo com fluência.Mas há sempre necessidade de esclarecer pequenas dúvidas. Por exemplo: qual imprensa regional?

«Comecei no velho jornal extinto desde 1971, "Democracia do Sul", que se editava em Évora. Depois, em 1977, liguei-me aí a um projecto jornalístico que teve uma duração curta, o semanário "Extra". Ainda trabalhei noutros, mas, em 1983, por razões diversas, fiquei desempregado. Voltei para Évora, onde me mantenho. Continuo desempregado, mas vou sobrevivendo e, claro, fazendo projectos.»

Será que a BD também entra nesses projectos?

«A BD para mim foi um acidente. Nunca se pôs a hipótese de continuidade, porque eu não sou desenhador, não conheço nem tenho contactos regulares com desenhadores. Mas, apesar de tudo isso, é uma hipótese que se poderá concretizar, se as condições conjunturais forem favoráveis.»

António Luís diz que não conhece desenhadores, mas conhece pelo menos uma desenhadora: Alexandra.

«Este episódio do "Faca no Bolso" deveria ser o início de uma série. Entretanto, os meus contactos com a Alexandra não se mantiveram - eu até pensei que a actividade dela na banda desenhada tivesse ficado interrompida nessa altura. E como os meus conhecimentos, nessa área, se resumiam a ela, daí que não tenha havido continuidade.»

«FACA NO BOLSO ESTEVE PARA SER FOTONOVELA»

Personagem pouco vulgar, o tal "Faca no Bolso". Ele começa por ser, neste episódio, uma mulher... De onde terá surgido a ideia para a criação de tão enigmática figura para a Banda Desenhada?

«Quando escrevi a história, não era para ser um argumento para banda desenhada, à partida. Era uma história, ou melhor, era o início de uma história. Depois de escrita, e depois de lida para alguns amigos - já não sei se a ideia foi minha, se nasceu de um consenso geral -, surgiu a hipótese de a visualizar. A primeira ideia, essa, creio que foi minha, foi a de fazer uma fotonovela que subvertesse as fotonovelas. Só que isso implicava a utilização de meios técnicos, e de pessoas, que tornavam um bocado difícil a sua concretização. 
Eu já conhecia a Alexandra nessa altura, conhecia algumas das coisas que ela tinha feito, e um dia entreguei-lhe a história e disse-lhe: «Olha, lê isso e vê lá se te interessa.» E foi assim. Ela acabou por fazer a banda desenhada e, na minha opinião, transmitiu em desenho a essência quer das personagens quer das situações que eu tinha imaginado, e fê-lo exactamente da maneira que eu gostaria de ter feito se soubesse desenhar.»

Antes de «Faca no Bolso», António Luís já escrevera mais alguma coisa?

«Gastei quilos de papel e de tinta, mas nada que se pudesse adaptar à BD. A "Faca no Bolso" foi uma história que, quando a escrevi, estava a visualizar. A minha frustração foi ter feito apenas um capítulo.»

Mas por que não escrever um segundo episódio? Caso a Alexandra não pudesse, devido aos seus actuais compromissos familiares e profissionais, talvez se arranjasse alguém capaz de o fazer.

«Eu acho que vou escrevê-lo. É evidente que a "Faca no Bolso" já não é só minha, é sobretudo da Alexandra. Se ela a quiser desenhar, eu fico satisfeito.»

Quase todos os adultos de hoje começaram por ver/ler, na sua infância e juventude, algumas das populares séries protagonizadas pelos famosos heróis da BD. Aqueles de nós que leram «O Mosquito», o  «Diabrete» ou o «Papagaio» lembram-se do «Cuto», do «Tarzan», do «Capitão Mistério», do aparecimento do «Tim-Tim» ou do «Príncipe Valente». Ou, noutras revistas posteriores, do «Rip Kirby», de «Blake e Mortimer», do «Tenente Blueberry»... É natural, portanto, que também o criador literário de «Faca no Bolso» tenha as suas predilecções.

«A personagem de que eu gosto mais na BD é o «Corto Maltese». Ele tem imaginação, coragem, e medo também. Vícios e virtudes que o fazem um herói anti-herói. Ele tem tudo o que um herói deve ter, e tem também tudo o que caracteriza um anti-herói. 
«Corto Maltese» é um personagem que me fascina: ele tem vícios suficientes para, em qualquer sociedade organizada, nomeadamente e especialmente nas chamadas sociedades ocidentais e cristãs, ser considerado, pelos poderes constituídos, um inimigo irredutível. Se vivesse aqui, seria procurado pelas Polícias ou estaria preso.»

Corto Maltese exerce um indiscutível fascínio numa determinada geração. Mas recuando até à adolescência, que outros heróis da BD terão entusiasmado o nosso entrevistado?

«Eu sou de uma geração, pelo menos na terra onde nasci e cresci, que na adolescência se deliciava com as derrotas que o «Major Jaime Eduardo de Cook e Alvega» - ex-estudante de Coimbra e major-piloto-aviador da RAF - infligia em cada episódio aos nazis. 
Mas tenho mais. «Robin dos Bosques», por uma razão fundamental: é um clandestino, um fora-da-lei, que rouba aos ricos para dar aos pobres. Gostava também, quando era puto, do «Zorro». É outro clandestino que, pela calada da noite, mascarado, vestido de negro, vai fazendo a justiça que gostaríamos - aqueles que pensamos assim - de ver concretizado nos nossos quotidianos. A formação ideológica da gente também também tem a ver com a adesão que sentimentalmente se vai dando aos pequenos heróis. Direi também que, na BD, procuramos alimento para os nossos sonhos. Lembro-me ainda de outros heróis, esses da minha infância: «Cocó, Reineta e Facada» (do Stuart), do «Cuto», dos «Sobrinhos do Capitão», do «Emílio e os Detectives» (que por acaso até não gostava muito). Li, geralmente emprestadas, muitas revistas:  «Mosquito», «Cavaleiro Andante», «Condor», «Falcão», «Mundo de Aventuras».

Preferências em relação a desenhadores? - uma curiosidade habitual quando se fala com alguém, pela primeira vez, sobre banda desenhada. 

«Uderzo, Hugo Pratt, Bonvi - gosto muito dos «Sturmtruppen» -, Hermann - deste gosto sobretudo dos desenhos, mais do que das histórias - e de Giraud - no «Blueberry» gosto dos desenhos e das histórias. 

Em Portugal, os argumentistas de banda desenhada são raros. A continuidade do nosso entrevistado nesse campo seria muito benéfica. Caso isso venha a suceder, haverá algum tema que lhe agrade em especial?

«Para já, que me ocorra, gostaria de criar um personagem que tivesse força, coragem, que, no fundo, sintetizasse o «Super-Herói» e o «Super-Anti-Herói». Mas é uma utopia. Eu não seria capaz de fazer isso. Portanto, para já, era capaz de continuar o «Faca no Bolso».

Avance, António Luís. Se não for com a Alexandra, há outros/outras desenhistas que precisam de alguém que lhes escreva os argumentos.
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Para ver a banda desenhada "Faca no Bolso" referida nesta entrevista, será necessário clicar no link 
http://divulgandobd.blogspot.pt/2017/02/faca-no-bolso-uma-bd-no-jornal-diario.html

Para ver a entrevista com Alexandra, a desenhadora criativa gráfica de "Faca no Bolso", clicar no link abaixo

http://divulgandobd.blogspot.pt/2016/12/entrevistas-antigas-autores-de-bd.html
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Os interessados em ler entrevistas antigas a vários autores de BD, nomeadamente Jorge Colombo, Luís Louro, António Simões, António Ruivo, António Jorge Gonçalves, Luís Diferr, Renato Abreu, "Pitágoras", Miguel Alves (actual Pedro Burgos), poderão fazê-lo clicando no item Entrevistas antigas a autores de BD visível no rodapé 

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